O perigo dos falsos doutores
O caso do estudante que atendeu irregularmente a menina Joanna Marcenal, morta em 2010, não é raro. Há casos – e mortes – em todo o país
Ana Júlia é uma sobrevivente. Ao nascer, há três anos e meio, ela foi diagnosticada com uma “infecção no sangue”, que seria responsável por seu quadro de febre ininterrupta. Ana Júlia ficou internada por dez dias na Santa Casa de Angatuba, no interior paulista. O diagnóstico foi dado pela doutora Adriana Fattori Tonet a partir de um exame clínico, sem testes de sangue ou de urina.
A mãe de Ana Júlia, Ivani Aparecida Ambrósio, de 32 anos, também ficou internada na Santa Casa, por cinco dias, mas só conseguiu falar com a doutora Adriana uma vez. “Ela me disse para não amamentar minha filha, porque um ‘líquido estranho’ do meu peito podia ser a causa da infecção”, diz Ivani. A recomendação foi seguida, mas a menina não melhorou. “A médica fugia de mim, não vinha no quarto me falar como estava minha filha. Tudo era comunicado pelas enfermeiras”, afirma. “Eu e meu marido achamos aquilo estranho, mas me diziam que era normal, que a doutora estava ocupada.” Só bem mais tarde é que os pais de Ana Júlia descobririam a verdade: Adriana Fattori Tonet não é médica.
Contratada como pediatra da Santa Casa de Angatuba, com salário de R$ 11 mil mensais, Adriana fora indicada ao administrador do hospital por um médico da região. Apresentou a inscrição no Conselho Regional de Medicina (CRM) em nome da médica boliviana Adriana dos Reis Nina, de São Paulo. Não exigiram diploma, documento de identidade, CPF nem comprovante de residência. Durante um mês de trabalho na Santa Casa de Angatuba, ela atendeu pelo menos 30 pacientes. Receitou medicamentos com doses até dez vezes superiores à recomendada, encontrou tuberculose em crianças com rinite alérgica e diagnosticou alergia em um menino com pneumonia.
A falsa identidade de Adriana foi descoberta por acaso. Uma funcionária da Santa Casa precisou ligar para ela e, sem ter seu número de telefone, recorreu ao cadastro no site do CRM. Acabou falando com a médica verdadeira. Ao descobrir que a doutora Adriana não era quem dizia ser, a direção da Santa Casa procurou a polícia. A farsante desapareceu no dia seguinte. O delegado de Angatuba, Hélio da Silva Rolim, monitorou o telefone celular da acusada com autorização judicial. Encontrou-a em uma clínica da Unimed no bairro do Tatuapé, Zona Leste de São Paulo, em meados de dezembro de 2007. Estava com viagem marcada para uma cidade no Pará, onde fora contratada como pediatra. Foi presa e indiciada, mas, por causa de um habeas corpus, não ficou nem um mês na cadeia. Três anos depois do crime, continua foragida. “Ela pode estar clinicando em qualquer lugar do Brasil”, diz Rolim.
Segundo a polícia, Adriana começou a atuar como médica em 2003, com um diploma falso de Cochabamba, na Bolívia. Tentou validar o diploma em faculdades de Goiás e de Pernambuco, enquanto trabalhava como garçonete. Seu primeiro emprego foi em um hospital público de Ibipitanga, na Bahia, entre 2005 e 2006. Chegou a ser responsável pela contratação e pelo treinamento de médicos e enfermeiros. Em 2007, em São Paulo, trabalhou nas Santas Casas de Misericórdia de Capão Bonito e Angatuba no intervalo de três meses. Ao ser presa, era médica de clínicas da capital e de Guarulhos. “Em todos os empregos ela só precisou apresentar uma cópia falsificada do registro no CRM para ser contratada”, diz o delegado Rolim.
Embora espantoso, esse não é um caso isolado. Entre 2005 e 2009, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) registrou 129 denúncias de falsos médicos, com um pico de 48 casos em 2007. O número de denúncias tem caído ano a ano, mas, para o delegado Anderson Giampaoli, da Delegacia de Saúde Pública de São Paulo, a queda não indica um número menor de falsificações: “Muita gente atua com diplomas falsos e muita gente está sendo atendida por falsos profissionais”.
Os falsos médicos usam nome, registro profissional e demais dados pessoais de um médico real. Também costumam clonar seus currículos, com títulos acadêmicos e congressos. Muitos vendem receitas e atestados para justificar dispensas no trabalho. Uma forma de evitar esses impostores é verificar o número do registro profissional nos sites dos Conselhos Regionais de Medicina, onde há a foto do médico. Se houver um número de telefone, ligar. Mas esse tipo de precaução é quase impossível nos atendimentos de urgência. Daí a importância das denúncias de mau atendimento.
No Rio de Janeiro, o número de denúncias de falsos médicos sextuplicou depois do caso Joanna Marcenal. Ela morreu aos 5 anos, em agosto de 2010, depois de ser atendida pelo estudante de medicina Alex Sandro Cunha Souza, que se passou por médico formado. Mesmo sem inscrição no CRM, trabalhava em pelo menos três hospitais usando o registro de outros médicos. Alex Sandro responde por acusações de estelionato, falsificação de documentos e exercício ilegal da medicina. Ainda deverá ser indiciado por homicídio doloso e tráfico de drogas – aplicou na menina substâncias de uso controlado. Poderá ficar preso por 12 anos. Em depoimento ao Ministério Público, depois de se entregar à polícia na semana retrasada, disse ter sido contratado por uma pediatra que ficava com parte de seu pagamento.
A tragédia serviu de alerta para uma forma corriqueira de exercício ilegal da medicina: estudantes que atuam como médicos. A polícia investiga 20 clínicas da Zona Oeste do Rio e da Baixada Fluminense que teriam contratado pessoas em situação similar à de Alex Sandro.
“Temos informações de casos desse tipo em todo o Brasil”, afirma Roberto D’Ávila, presidente do Conselho Federal de Medicina. “Prefeitos e secretários contratam estudantes pensando que já são médicos, sem pedir inscrição no CRM. Às vezes é mais grave: contratam o estudante porque o serviço é mais barato.” No Nordeste, a situação seria corriqueira. “A carência de médicos para atender em cidades afastadas é tamanha que os prefeitos contratam estudantes por menos de R$ 1.000 para trabalhar em plantões”, diz Luís Eduardo Barbalho de Mello, presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Norte. Para evitar casos assim, Conselhos Regionais de vários Estados nordestinos fazem campanhas em faculdades e fiscalizam postos de saúde no interior. Em Parazinho, Rio Grande do Norte, um estudante avisado da chegada da fiscalização saiu correndo pela rua e invadiu o terreno de uma fazenda para escapar do flagrante. Ele atendia 20 pacientes por dia em seus plantões na Unidade Integrada de Saúde.
Os Conselhos Regionais de Medicina não podem punir os alunos que se passam por médicos. Caso sejam flagrados, eles respondem criminalmente, na Justiça. Alguns Conselhos defendem a ideia de que a disciplina de ética médica, tradicionalmente ensinada no fim do curso, seja dada nos primeiros anos de faculdade. Outros querem que as secretarias estaduais sejam obrigadas a apresentar aos Conselhos uma lista dos médicos contratados.
A divulgação da lista de funcionários poderia ter evitado pelo menos uma morte em São Sebastião do Caí, a 70 quilômetros de Porto Alegre. Em 2006, a prefeitura da cidade contratou Marcos Renato Lanz, de 46 anos, como médico do hospital municipal e diretor-geral do serviço médico da cidade. Atendia 30 pessoas por dia e ganhava R$ 5.800 mensais. Para ocupar o cargo, Lanz só precisou apresentar documentos pessoais e uma cópia não autenticada de um certificado de conclusão do curso de medicina. Se a prefeitura tivesse exigido ao menos o histórico escolar de seu futuro diretor, veria que Lanz cursou a faculdade de medicina na Universidade de Caxias do Sul (UCS) por 18 anos, sem jamais se graduar. Depois de repetir 97 disciplinas, foi desligado. Nos dois anos em que esteve no Hospital Municipal Sagrada Família, Lanz conquistou os pacientes com sua lábia. “Ele ouvia as pessoas, pedia muitos exames, era atencioso”, diz Charles Emil Martins, promotor de justiça da cidade. “Ouvia muito porque não tinha o que falar, porque não tinha capacidade técnica de avaliar e diagnosticar. Substituía-a pela atenção e ganhava a simpatia das pessoas.”
A afeição a Lanz custou a vida do aposentado José Carlos Muller. Em janeiro de 2007, ele procurou o hospital municipal com dores abdominais. Lanz apontou um quadro de infecção urinária. Depois de dois meses de tratamento, as dores continuavam. Novos exames, e Lanz mudou o diagnóstico para cálculo renal. A situação do aposentado piorou, mas ele resistia a procurar outro médico. Apesar de não ficar curado, gostava da maneira como era atendido. Depois de seis meses de dores, Muller consultou um médico de verdade. Descobriu que estava com um tumor no rim, que havia se espalhado para outros órgãos. Morreu em setembro de 2007. Viveu o bastante para ver o falso médico ser preso – e liberado, no dia seguinte, por um habeas corpus do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em outubro do ano passado, Lanz foi condenado pelo Tribunal do Júri a sete anos e oito meses de prisão por homicídio com dolo eventual. O júri concluiu que o falso médico não teve intenção de matar, mas, por clinicar sem estar capacitado, assumiu o risco de provocar mortes. Ele aguarda o julgamento do recurso da condenação em liberdade. O promotor Charles Martins também entrou com uma ação de improbidade administrativa contra o prefeito de São Sebastião do Caí, Léo Klein, e a diretora do hospital, Agnes Biesdorf, pela negligência na escolha do funcionário. “É uma falha absurda da administração municipal, que aceitou contratar um médico sem exigir nenhum documento oficial. Eles têm corresponsabilidade”, diz Martins. O prefeito da cidade se defende da acusação. Diz que apenas assinou uma contratação, em caráter emergencial. “Existia uma procura de médico comunitário, ele ofereceu seus serviços para a Secretaria da Saúde, e eu autorizei. Não é normal uma pessoa se apresentar como médico e nós desconfiarmos.”
Fonte: Revista Época
4 comentários:
ana juia e minha sobrinha e ta bem gracas a deus huahuahuaahu
Tem um falso médico na Ceilandia-DF, atende na QNM 02 Conju F Lote 11. Dr. Julimar Meneses
Sério que ele não é médico de verdade?
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