Estimada tia Susana,
Em primeiro lugar, perdoe-me a intimidade de chamá-la de tia (“Professora sim, tia não”, como queria o educador Paulo Freire), mas é porque eu aprendi, desde cedo – quando Lucas estudava no NEI (Núcleo de Educação Infantil) –, que esse era o seu nome.
Lucas? É sim! Aquele mesmo que escreveu o “Dinossauro Estudante”, lembra? (“Era uma vez um dinossauro chamado Rex que amava estudar. Ele morava no Egito, era muito fofinho e gostava de jogar vídeo game. Um dia a professora mandou uma tarefa para casa, e ele acertou tudo e a professora disse: ‘Parabéns!’. Só que ele estava muito triste porque precisava sair da escola porque estava grande, mas teve uma idéia: se disfarçou de pessoa pequena e começou a estudar”).
Pois é, tia Susana, o Lucas saiu do NEI, cresceu, já está com quase doze anos, e estuda numa escola religiosa, daqui da capital, dita forte, e que, a cada vestibular, aumenta o seu número de aprovados.
Mas, quer saber de uma coisa, tia Susana, assim como o dinossauro Rex, do Lucas, eu também estou triste. Pois agora o meu filho só estuda coisas de gente grande, coisas ditas importantes, coisas que irão cair no vestibular: recentemente, ele passou o dia todo decorando, juntamente com a sua mãe (tinha razão quem disse que quando Deus criou o mundo e não podendo está em todos os lugares, aí inventou as mães), os materiais de laboratórios e as suas funções. Então, era um tal de Pipeta prá lá, mais Becker, Erlenmeyer, Tubo de ensaio, Kitassato, Proveta, etc. etc. tudo de importância tamanha para a vida futura de Lucas.
Fico imaginando, cara tia Susana, se Lucas decidir ser um filósofo, ou até mesmo se quiser seguir a carreira médica – quem sabe o masoquismo do pai não foi transmitido geneticamente para o filho? –, como esses ensinamentos serão importantíssimos para ele... Como será importante saber a função de uma pipeta, para se descobrir a ética kantiana, ou ainda: como através de Kitassato, ele pode chegar aos ensinamentos de Montaigne de que filosofar é aprender a morrer...
O danado é que Lucas, nunca mais, teve contato – e olha que essa escola é dita forte – com a poesia de Adélia Prado, com a magia de Carlos Drummond de Andrade, com a beleza de Cecília Meireles e com os encantos de Homero, nas suas ilíada e odisséia.... Nunca mais, Lucas participou de um sarau de poesia, coisa tão comum no NEI, o que nunca esquecerei: aquelas tardes, quando todas aquelas crianças pequeninas se divertiam na magia da poesia.
É, tia Susana, Lucas vai fazer vestibular, e não pense que a coisa irá mudar não! As universidades estão também cheias de ensinamentos “bastante úteis”, como os materiais de um laboratório e as suas funções... Outro dia, soube até que numa faculdade do sul do país, uma professora ensinou aos alunos do segundo período de medicina que não tocassem na mão dos seus pacientes, pois este ato poderia transmitir doenças (microorganismos) para o médico. Meu Deus! Que ensinamento maravilhoso (ensinar a frieza na relação médico-paciente como se fosse um antimicrobiano), não acha tia Suzana?
Tinha razão Paulo Freire ao nos alertar: “É preciso não ter medo do carinho, não fechar-se à carência afetiva dos seres... Só os mal-amados e as mal-amadas entendem a atividade docente como um que-fazer de insensíveis, de tal maneira cheios de racionalismo que se esvaziam de vida e de sentimentos”.
Vida e sentimentos, coisas que não são ensinadas nas nossas escolas. Afinal, é preciso formar máquinas, repetidoras de atitudes desumanas e frias, para transformar a sociedade num grande hospital de doentes infelizes.
Pois, sem a infelicidade, não precisaríamos de políticos, de igrejas, nem muito menos de Shoppings centers... É no vazio da infelicidade que estas coisas surgem. E era por isto que Freud sentenciava: “O ser humano não pode ser feliz”.
Eu sei, tia Susana, que a poesia, a literatura, as artes, as músicas nunca aumentaram, nem aumentarão, as bolsas de valores, as poupanças, nem comprarão carros importados, etc. etc., mas, são essas coisas que nos tornam humanos. Humanos e criativos. Humanos, criativos e belos. E só a beleza, como dizia Dostoievski, é que salvará o mundo...
Pois é, tia Susana: se Lucas ainda poderá ser salvo? Acredito que sim! Lutarei com todas as minhas forças para que isso aconteça: há um mês, comprei para ele o livro “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry. Livro de gente pequena, como diz a minha aluna Geórgia, “pois, gente grande não passa da primeira página”. E Lucas, em dois dias, devorou o livro. Exultante de felicidade, com o coração quase saindo pela boca, perguntei de qual parte ele tinha mais gostado e sabe o que ele respondeu? “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz!”...
É isto, tia Susana: o dinossauro Rex, mesmo crescendo, continuará a ser sempre criança. E é essa crença que me faz viver...
Um grande abraço!
Do seu Edilson Pinto
Francisco Edilson Leite Pinto Junior
Professor, médico e escritor
E como deverá ser efetuado o pagamento?