Conto de um professor arrependido
Embora, tendo sido alertado por Fernando Pessoa - de que “Se o coração pudesse pensar, pararia”-, faço essas minhas confissões, com ele, com o coração. Até por que, pouco me importa se ele parar neste momento: estou mesmo no meu fim e, por isso, tenho a lucidez, de quem está morrendo, diante de mim.
Ah! Além da lucidez, tenho também a dor. A difícil e incontrolável dor. Não das metástases, que teimam em ganhar a minha corrente sanguínea, atingindo os meus ossos: não é a dor do meu corpo, tomado de células cancerosas, da minha próstata, que me dói. E sim, a dor da minha alma. E como ela dói. Dói por saber que dos meus 65 anos de vida - quarenta dos quais dedicados ao ensino médico-, não consegui cumprir a minha missão: fracassei como professor.
Dizem os gnósticos que “pecar é errar o alvo”... e eu pequei! Pequei por ensinar aos meus alunos, não o essencial... Ensinei-lhes sobre ressecções e reconstruções; sobre qual a melhor incisão; o melhor fio de sutura a ser empregado em cada tecido, etc. etc., mas, deixei de ensinar-lhes sobre a verdadeira essência da medicina – que é a mesma da vida: “amar o próximo, como a nós mesmos!”
Ah! Quantas não foram às vezes que ao chegar, todo engravatado, cheio de empáfia, adentrando nas enfermarias, parecia mais um deus. Alguém que estava acima do bem e do mal. Um ser infalível e, o que é pior, essencialmente frio. Sem sentimentos e muito menos sem compaixão. Aí, ficava fácil juntar os residentes e doutorandos, em volta do doente, e nem ao menos lhe perguntar o seu nome; de onde ele vinha; se tinha família; se tinha um emprego; quais eram os seus sonhos... Nada. Absolutamente nada importava, a não ser a sua queixa principal, o seu exame físico, nem sempre minucioso e, principalmente, os seus exames complementares. Como adorava ficar mostrando todas aquelas películas de tomografia, apontando o lugar da doença e dizendo qual a operação seria realizada... Neste cenário de insensibilidade - entre as rivalidades sublimadas de staffs, residentes e doutorandos-, o paciente limitava-se apenas a exercer o seu papel de ator coadjuvante, onde ter um número do leito e um diagnóstico bastaria...
Meu Deus! Quantas não foram às vezes em que dizia: “Não se envolvam com os pacientes! Mantenham-se distante. O nosso papel é chegar, identificar o ‘erro’, consertar e cair fora”. Por isso, é de se entender que mesmo tendo operado mais de 400 casos, por ano, ao longo de todo esse período, não consigo me lembrar de nenhum rosto, dos meus pacientes. Nunca cheguei a olhar para eles, como seres humanos. Que pena... Afinal, “os olhos são as portas da alma”. É através deles, que poderemos enxergar a tristeza e a aflição do individuo que sofre pela sua doença.
Diz o Eclesiastes que “o sábio tem olhos, mas o tolo caminha na escuridão”. Então eu me pergunto: “Por que fui tão tolo? Por que fui tão cego? Por que via e não enxergava?” Via órgãos doentes; não enxergava pessoas doentes. E essa minha cegueira foi responsável pela formação de várias e várias gerações de máquinas repetidoras de solicitar exames... Não formei médicos, infelizmente...
Certa vez, o escritor Berkeley disse que o gosto da maçã não estava nem na própria maçã, nem na boca de quem a come. Na verdade, para surgir o gosto, é preciso um contato entre elas – a maçã e a boca. O mesmo acontece na medicina. Sozinhos, médicos e pacientes, nunca serão capazes de degustar o verdadeiro sabor, desta maravilhosa profissão. É na interação entre eles, na relação médico-paciente, respeitosa das identidades e dos respectivos nomes, que poderemos provar o melhor de todos os manjares dos deuses: o amor.
Era por isso, que sentenciou Harold Kushner: “Nenhum de nós conseguirá ser verdadeiramente humano em situação de isolamento. As qualidades que nos fazem humanos só emergem através das maneiras pelas quais nos relacionamos com os outros”. Então, para a pergunta de Drummond -“Que pode uma criatura senão, entre criaturas amar?”-, a resposta é sim! E a medicina é antes de tudo um ato de amor. Pena que só agora percebi isso...
Tinha razão Jung quando escreveu que só o médico doente é capaz de curar. Pois, só quando nos colocamos no lugar daquele que sofre, quando assimilamos todas das suas mais terríveis provações – desde a longa espera nos nossos consultórios, passando pela difícil comunicação de um diagnóstico de câncer até uma cirurgia mutiladora... – é que conseguiremos entender o que é ser médico.
Ah! Se as escolas médicas, deste país, começassem a fazer uma autocrítica dos seus projetos pedagógicos (onde cargas horárias extensas, de matérias puramente tecnicistas, fossem substituídas, por momentos, como muito bem retratado, por Samuel Luke Fildes, que teve a lucidez de colocar o médico, simplesmente, ao lado da criança que estava morrendo, para mostrar-nos que “o sofrimento somente é intolerável quando ninguém cuida”, como disse Cicely Saunders).
Pois bem! É para vocês, meus caros alunos de medicina - que representarão sempre o futuro da nossa profissão-, que escrevo esta minha última lição. Deixo aqui, o relato de quem teve a oportunidade de ter vivido e não viveu. De quem poderia ter amado e ser amado. De quem não soube aproveitar o dom que me foi dado...
P.S. Dedico este texto ao Jornalista Carlos Santos, que como muitos clamam por uma medicina mais humana.
Francisco Edilson Leite Pinto Junior
Professor, médico e escritor.
“O médico” - Sir Samuel Luke Fields
21:33
Diego Torquato
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