12 março 2011

Angústia de Hipócrates

Os índices de depressão e suicídio são elevados entre médicos e estudantes de medicina, profissionais que apresentam taxas de suicídio maiores do que a população em geral, mas resistem mais do que os não médicos a vencer o estigma e procurar ajuda

A classe médica corre mais risco. Estudos realizados nos Estados Unidos mostram que entre essa categoria de profissionais as taxas de suicídio são maiores do que na população em geral. A diferença para mais é de 40% para os profissionais do sexo masculino, comparativamente aos homens em geral, e de impressionantes 130% para as médicas, em relação às mulheres em geral. O quadro começa a se desenhar já nos bancos das Faculdades de Medicina, informam as pesquisas. Estudantes da área médica ingressam nas universidades com perfis de saúde mental semelhantes aos dos colegas das demais áreas, mas tendem a concluir os estudos com altas taxas de transtornos mentais, tais como depressão e síndrome do esgotamento profissional, ou burnout. Segundo as pesquisas, 25% dos residentes sofrem de depressão, 50% deles já passaram pela experiência do burnout e mais de 10% desses jovens têm pensamentos suicidas. São números elevados, mesmo considerando o pesado nível de estresse característico do período de residência.

Entre os profissionais formados, o quadro não é diferente. "O médico tende a criar uma espécie de couraça protetora, até mesmo para poder suportar a carga de angústia do seu dia a dia", diz Neury Botega, do Departamento de Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Essa rigidez, muitas vezes, chega às relações pessoais e pode repercutir tanto na saúde mental do profissional como em aspectos de seu comportamento. "Os índices de depressão e de abuso de álcool e outras drogas psicoativas entre médicos são altos", diz Botega. Uma parcela importante de profissionais não resiste às inúmeras fontes de estresse da profissão − tais como carga horária elevada, múltiplos empregos, convívio com o sofrimento e a morte − e necessita de ajuda. "Entre 8% e 10% da população médica apresenta uma predisposição a desenvolver distúrbios emocionais", afirma o psiquiatra Luiz Antonio Nogueira-Martins, criador do Núcleo de Assistência e Pesquisa em Residência Médica e Pós-Graduação (Napreme), centro da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que presta assistência psiquiátrica e psicológica ao residente médico e desenvolve pesquisas sobre sua saúde mental.

Resistência e estigma

A procura de apoio e orientação é um passo difícil para o profissional de saúde que sofre de transtornos mentais e/ou apresenta tendência suicida. Apesar do amplo acesso à atenção especializada, muitos indivíduos apresentam forte resistência a buscar auxílio. Um estudo entre universitários nos Estados Unidos mostrou que o tempo médio que os estudantes de Medicina levam para procurar ajuda, na área de saúde mental, é de 20 anos, informa Nogueira-Martins. "Isso significa que o estudante pode passar toda a sua vida estudantil, até mesmo ingressar na profissão, antes de receber atendimento adequado", ele observa. Entre as causas da resistência está o estigma da doença mental, ainda hoje existente, dizem os especialistas − especialmente na área médica. "Muitas vezes, o médico carrega o sentimento de que doente é o outro, ele próprio não tem o direito de fi car mal", diz Botega. O tipo de atenção que o profissional de saúde costuma receber é outro motivo de resistência, segundo Nogueira-Martins. "Médicos com dependência química, por exemplo, são às vezes censurados moralmente pelos colegas quando procuram atendimento", afirma o psiquiatra da Unifesp.

Prevenção

"O primeiro passo é combater o estigma e ajudar os profissionais a buscar ajuda", ressalta Neury Botega. Com a meta de oferecer uma alternativa concreta nesse sentido, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e a Unifesp criaram, em 2002, a Rede Estadual de Apoio a Médicos Dependentes Químicos. Trata-se de uma iniciativa pioneira no campo da prevenção e do tratamento de um dos principais fatores de risco de suicídio entre profissionais de saúde. O serviço, que já atendeu mais de 400 médicos desde sua criação, inclui psicoterapia, manejo psicofarmacológico e orientação aos familiares, evidentemente, com garantia total de anonimato e confidencialidade aos pacientes. Um estudo realizado em 2006 pela Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), da Unifesp, mostrou que a rede vem obtendo excelentes resultados terapêuticos, além de ter contribuído para reduzir o intervalo de procura de ajuda por parte do médico dependente químico, de uma média de sete anos, antes do programa, para três anos e meio, após sua implantação. "Isso mostra que quando se cria um bom serviço, oferecido sem preconceitos e com sigilo, a adesão do médico é grande e os resultados, muito bons", destaca Nogueira-Martins.

Os serviços de atendimento a estudantes e residentes de Medicina, na área de saúde mental, existentes hoje nas principais universidades brasileiras, como Universidade de São Paulo (USP), Unicamp e Unifesp, foram criados a partir da década de 1960, por conta dos episódios de suicídio observados entre estudantes. "Não podemos afirmar que exista uma relação de causa e efeito, não foram realizados estudos a respeito, mas não ocorreram novos casos de suicídios entre estudantes e residentes depois da criação dos serviços de atendimento psicológico e psiquiátrico na Unifesp", comenta o criador do Napreme.


Fonte: Revista Pesquisa Médica - Nº17 Jan-Mar 2011

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